sábado, 10 de maio de 2025

canção da concha

 A cada lambida salgada, granulada e fria que o mar dá na areia, se movimentam as conchas. Pedaços de cálcio rolando, indo e vindo, sendo reveladas ou arrastadas para a água, essas conchas vivem na beira do mar. Uma criança que vive na beira do mar se ocupa de juntar nas conchas das mãos, conchas do mar. A criança não sabe que suas mãos são pequenas e que, em algum momento, não caberão nelas tantas conchas quanto gostaria de levar. Para onde a criança quer levar essas conchas, e porquê? Esses pequenos pedaços de cálcio esbranquiçados, os dentes de leite do mar, a criança quer tê-los consigo. Seria para guardar desse momento de infância as miudezas? Seria para guardar a infância em uma memória de cálcio e sal? O choro do dente que cai, o choro do mar cujas conchas de brincar se perdem em potes, em vidrinhos, em gavetas de cômodas de crianças. Se um dia a criança jurar que devolve as conchas, quando estiver muito longe da infância, quando estiver bem mais próxima do mar, não haverá ressentimento. O mar quer o cálcio das conchas, quer o cálcio das crianças, quer a brincadeira das ondas e quer, sendo muito velho, tudo de novo. 


Escrevi esse texto depois de ver uma criança catando conchinhas na praia da cachoeira do bom jesus, cena que me fez lembrar do reencontro com o meu sobrinho. Ele fez exatamente a mesma coisa ao chegar na praia comigo e com a minha irmã. Se eu pudesse, dedicaria todas as conchinhas do mar às crianças, e o mar também, para que o plástico continuasse mais debaixo das colunas de água e menos nas bocas das tartarugas e dos filhotes de gente. 

domingo, 26 de junho de 2022

 Tudo o que reluz é anzol

 Está tudo normal

Como sempre, indo mal

Eu tinha nome 

Depois um número 

Hoje 

Só sombra 


Da árvore,

Nem sombra

Da história,

Nem sombra

Os rastros ficarão

A boiada deixa, eventualmente, seu rastro


sábado, 11 de junho de 2022

Balada da terra plana


hasteio a bandeira

branca 

iço o ferro

continuo navegando

ao

redor do buraco

traço o rumo: a

beira do mundo


cada copo americano

uma tempestade

cada corpo ao sul

Encar quilha

vertigem na garrafa 

garrafas secas

sem mensagem


mesmo em terra

com água por dentro

com os olhos salgados

mareamos 

nunca tão longe do mar

nunca tão perto


mesmo no cristalino mergulho

nunca tão perto

quando a água cai

do céu

enlameia

inunda e afoga

Aflitos 

palafitas

nunca tão longe


águas passadas 

movem 

redemoinhos

e a tormenta

ventos alisam 

vento forte é o que te pega desprevenida


das cinzas às cinzas

do pó ao pó

da água à àgua 

re

volta 


a última viagem:

derrota 

nos leva sempre

para um estado:

O liquído


não verás futuro sólido

líquido é o seu verdadeiro estado

a vida só pode ser verde

onde molha

no vapor que sai da boca você vê:

A alma é água


sábado, 1 de janeiro de 2022

Brasil

É tempo de pausa 
Relógios estão congelados
Mas a largada já foi queimada
Junto com alguns corpos

É tempo de balsa
Vai e vem de pêndulo 
Solto sobre a água
A serra salgada 
Onde afunda o ferro

É tempo de valsa
Por cima das águas 
Uma dança espuma
A palha girando 
Virando pó 

Mundo de água e fogo
De água e fogo 
Mundo de fogo e água
Inunda em cinzas

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021


Um sol vivo sobrevoa minha cabeça 

Um sol pra cada um de nós 

Seis bilhões de sóis queimam 

Sozinhos 


Eu não preciso encontrar ninguém 

Se eu cruzar com um animal diferente, um que voe, vou sorrir 

Busco animais que cortem o vento

Não preciso encontrar alguém 

Não ter compromisso, nem reunião importante, não ter marcado 

ser a última a pisar na lua 

Ninguém me espera, moro longe


Não preciso encontrar todas as pessoas do mundo 

O relógio bate as horas

Mesmo que eu não pudesse escutar, há o sol

Há sóis, sombras 

Horas no chão

Horas a escorrer, caindo em pé, correndo deitadas

E não há no mundo quem eu precise encontrar

É tarde



Tava eu na parada de onibus quando vi um roedor entrar na toca

Um bueiro aberto na calçada 

É tarde, pensei comigo, pra ir atrás de um rato

Mesmo assim entrei com a cabeça lá dentro

E na água escura vi meu rosto refletido

Mas também já era tarde para amar minha própria imagem 

Além do mais, eu estava indo pegar a condução 


Escuto que no mar de piedade quem canta são os tubarões 

Só que é tarde para me jogar aos dentes pontiagudos 

da fome dos outros 

Pego o Rio Doce, lotação 

Chego salgada de suor

na água, piranhas 

Preciso olhar minha casa

já é tarde 

Para catar flores na margem e ouvir o canto de peixes

Com a boca cheia de dentes 


Pego o elevador, e mesmo que minha alma subisse aos céus, já é tarde

Há anos permaneço imóvel, para visitação

Convites para entrar e arrombamentos 

Preenchem meus dias

Mas é tarde para confiar na valorização

As rachaduras só aumentam

E aqui alaga

E andei pensando bem

Talvez eu pegue o elevador e desça

Até o subsolo

Mas o tempo não passa

e ainda é cedo demais

canção da concha

 A cada lambida salgada, granulada e fria que o mar dá na areia, se movimentam as conchas. Pedaços de cálcio rolando, indo e vindo, sendo re...