quarta-feira, 10 de março de 2021

  João,

  o Normal comeu minhas melhorias                        

minhas alegrias

                         minhas fantasias

  o Normal colheu com as mãos sujas

                         minhas cores

  o Normal parido

  há muitos anos

  natimorto

  seco

  brotou da fenda

  pegando fogo

       o fogo do Normal não purifica

            queima lentamente 

            pira

            cobre o céu 

            ou chumbo

            de norte a sul

   não quero o novo e nem o velho

   chega de Normal 


    quero arrancar essa língua 

    da minha cabeça 

    essa língua não me deixa pensar

    direito

    essa língua é o Normal 

    Norma

    eu quero pensar sem letras

    palavras

    cantar assobio do vento

    vento existe

    até no sol

    o normal que vá 

    pro diabo

    que o carregue




Alice - rio para não chorar

 


Ofélia é um rio salgado
Seu olho é um furúnculo aberto

D’onde chora uma mistura lamacenta 

Quente, esverdeada, vaporosa
Sem margem e nem tamanho
Deságua num mar sem nome

Ofélia é um rio de lágrimas 

Seu olho nunca cessa de jorrar

Espuma fétida, conjuntivite

Partículas de vidro, cristais de sal 

Seu leito é um lençol rasgado

Que abraça seu corpo de água moribundo


Ofélia é um doce rio marinho

Onde boiam pneus 

Onde flutuam sacolas

Ondem brincam de morrer os meninos

Que ninguém reclama

Onde vão se afogar os peixes


Ofélia é um manto de pesticida

Rio de água parada

Que envenena as grávidas

E seus natimortos

Todo o sal da terra jaz em Ofélia

Que desidrata a razão humana


Ofélia é uma bomba que foi jogada do céu

E caída na terra abriu um rombo

Bem no único olho que lhe sobrava

A terra ficou cega pra sempre

E nunca mais calou o seu pranto

Num choro que é horizontal


Ofélia é um acidente

Sem medida e sem localização

Não pertence a nenhum município 

Estado ou país

É um rio sem curvas, sem quedas

E sem marco


 agora eu sei o que sou: animal que quer coisa que animal nenhum pode sonhar em ter: sono de pedra. agora eu sei o que sou, já suspeitava: carne mole, miolo e tripa. perecível nos sentidos. recipiente de uma medida de vida cheia de gestos. há pedras que eu atiro só para perturbar lhes o sono, pedras que eu chuto. já entendi e nem tento mais dormir. quando eu for pedra dormirei. só assim.

 


o poema é o último a despertar. quando tudo vai embora é que poema acontece. é com os restos que ele se alimenta. é dos fins que ele nasce. o poema é o rastro do que passou. o poema chega quando até José se retira. é aí que podemos falar de José. o poema chega depois de tudo. de surpresa. nó de tempo. o poema é feito agora de tudo passado. o poema também vai. mas é o último a despertar.


 Confissões

 I. você só me ama até aparecer o primeiro homem


 Com fricções


 I; a minha pele toda arrepia em contato com o ar

 II. a minha pele toda areia salgada

 III. arrepiada de vento


 Confecções


I. a descostura da roupa nos faz iguais


Com ficções

I. todo dia é uma história diferente
II. a mesma história

 Não verás futuro sólido

líquido é teu estado

Te fizeram grande pensar não ser matéria

mas voltarás diminuído

se não souber ser cacto na aridez

Nas veias afluentes onde navegam teus instintos

seiva

está exposta a verdade

em vapor:

A alma é água


derrota



foi o balanço da rede que me ensinou a navegar

na saudade do verde Atlântico aprendi que se afogar é preciso

vejo a tempestade de dentro do copo, corpo americano submerso

naufrágio de mil léguas no aquário de um restaurante

foi um peixe dentro de um saco plástico, que no meio da feira me contou como se fazer de vivo

para essa deserta ilha aceno meu lenço

ergo a bandeira branca e continuo navegando ao redor do buraco

traço o rumo: a beira do mundo.


canção da concha

 A cada lambida salgada, granulada e fria que o mar dá na areia, se movimentam as conchas. Pedaços de cálcio rolando, indo e vindo, sendo re...