domingo, 4 de abril de 2021

Eu passo mal 

No céu uma revoada de papagaios 

Tapa o sol

E logo as nuvens chegam

Algodão carregado de chumbo

Chumbosos projéteis lançados do céu 

Elétricas flechas 

O sol sumiu 

Nuvens turvas tapam num teto engessado o límpido azul estratosférico 

A muralha celeste 

E de repente desaba

Deságua 

Inunda a face da terra

Chove há mais de uma semana

no molhado

sábado, 3 de abril de 2021

 O

Solitário ser errante

Quando finalmente percebe algo 

Percebe isso

A primeira comunhão 

É com a matéria 

A segunda, com o resto

Coração 

Você veio, 

Você foi

Mas voltará

Aparição repentina, a terceira

Lâmina, nó de escolta

Ave 

Num bater de pálpebras 

Voltar a se sentir tão SOS

Afundamos assim tão pra dentro da solidão

Poço fundo 

Buraco estrelado 

Céu cerrado

Tombei em mim

De novo

 Os dias estão passando fluídos sem deixar pegadas, deixam uma espécie de muco claro no tempo, dias de outono.

Irritação nos olhos, irritação nas narinas, mofo em casa imaginando onde será a próxima revolução do espírito. Não quero a revolução discreta de um filme ou música ou poesia, quero grande.

Por detrás do texto organizado, absurdo, uma pessoa sem graça, uma pessoa pra dentro, uma pessoa sem voz, a muda. Gosto de boiar, gosto de ouvir, gosto da janela do transporte. Gosto da possibilidade de viajar agora, um dia, pra onde. Existem tempos, coexistem. Eu vivo o que poderia ser o futuro (nunca será) e isso é estar à frente e atrás do meu tempo. Eu vivo também o passado (que não foi) para reprimir um pouco a ansiedade, para proteger esse silêncio. 

Essa ansiedade pelo futuro não seria uma fé em algo absurdo? Seria melhor o trabalho pelo futuro, garante mais. A fé remove entranhas, desde antes. 

A fé destrói milhões. O meu mundo é generosidade, a qualquer custo.

Não quero que me vendam. Não quero que me vendam nada. Eu sou a mosca, quanto é que eu valho, amor?


 

Vivo num deserto de água
Assisto deitada no chão o dia nascer nublado
Água no céu


Eu gostei de te imaginar
Embora eu não conheça


Sou um deserto molhado
Eu gastei o último olhar antes de dormir
No seu rosto
E depois no céu nublado

 
Sonhos úmidos me espreitam
Morre a vegetação do semi árido
Mas o sertão está em toda a parte
Um céu vestido de algodão
Eu sonho

Um olho de água na terra 

Brota mais quando chove

A vida só é verde aonde molha

Toda noite maré de enchente 

Eu alago


Sonhos úmidos me alcançam
A vegetação pantaneira brota
Alastrada no chão
Acordo com sede

quarta-feira, 10 de março de 2021

  João,

  o Normal comeu minhas melhorias                        

minhas alegrias

                         minhas fantasias

  o Normal colheu com as mãos sujas

                         minhas cores

  o Normal parido

  há muitos anos

  natimorto

  seco

  brotou da fenda

  pegando fogo

       o fogo do Normal não purifica

            queima lentamente 

            pira

            cobre o céu 

            ou chumbo

            de norte a sul

   não quero o novo e nem o velho

   chega de Normal 


    quero arrancar essa língua 

    da minha cabeça 

    essa língua não me deixa pensar

    direito

    essa língua é o Normal 

    Norma

    eu quero pensar sem letras

    palavras

    cantar assobio do vento

    vento existe

    até no sol

    o normal que vá 

    pro diabo

    que o carregue




Alice - rio para não chorar

 


Ofélia é um rio salgado
Seu olho é um furúnculo aberto

D’onde chora uma mistura lamacenta 

Quente, esverdeada, vaporosa
Sem margem e nem tamanho
Deságua num mar sem nome

Ofélia é um rio de lágrimas 

Seu olho nunca cessa de jorrar

Espuma fétida, conjuntivite

Partículas de vidro, cristais de sal 

Seu leito é um lençol rasgado

Que abraça seu corpo de água moribundo


Ofélia é um doce rio marinho

Onde boiam pneus 

Onde flutuam sacolas

Ondem brincam de morrer os meninos

Que ninguém reclama

Onde vão se afogar os peixes


Ofélia é um manto de pesticida

Rio de água parada

Que envenena as grávidas

E seus natimortos

Todo o sal da terra jaz em Ofélia

Que desidrata a razão humana


Ofélia é uma bomba que foi jogada do céu

E caída na terra abriu um rombo

Bem no único olho que lhe sobrava

A terra ficou cega pra sempre

E nunca mais calou o seu pranto

Num choro que é horizontal


Ofélia é um acidente

Sem medida e sem localização

Não pertence a nenhum município 

Estado ou país

É um rio sem curvas, sem quedas

E sem marco


 agora eu sei o que sou: animal que quer coisa que animal nenhum pode sonhar em ter: sono de pedra. agora eu sei o que sou, já suspeitava: carne mole, miolo e tripa. perecível nos sentidos. recipiente de uma medida de vida cheia de gestos. há pedras que eu atiro só para perturbar lhes o sono, pedras que eu chuto. já entendi e nem tento mais dormir. quando eu for pedra dormirei. só assim.

canção da concha

 A cada lambida salgada, granulada e fria que o mar dá na areia, se movimentam as conchas. Pedaços de cálcio rolando, indo e vindo, sendo re...